Professoras - Como vem sendo vivida a avaliação do processo educativo? Janssen Ferreira - Hoje predominam formas de avaliação que podem ser consideradas como um instrumento de exclusão. Há uma cultura de mensuração que classifica e exclui o aluno, seleciona os melhores. O professor começa a excluir já no modo de organizar seu trabalho — ele se baseia em um tipo de ensino para o qual acredita que há um tipo de aprendizagem, e o aluno que não consegue se aproximar desse modelo é classificado e excluído do processo. Enfim, é uma visão classificatória, punitiva e coercitiva, sendo um instrumento de controle da conduta comportamental e cognitiva do aluno. É preciso criar uma cultura que de fato avalie. P - Na prática, de que modo criar essa nova cultura? JF - O professor que só apresenta um tipo de aula e quer adequar todos os alunos pode ser comparado com um alfaiate que faz só um tipo de roupa para todo mundo vestir. O professor deve compreender, primeiro, que a prática avalista não está dissociada do contexto do trabalho pedagógico. Não adianta querer mudar o sistema avaliativo sem mudar também o trabalho pedagógico e as condições de trabalho do próprio professor. As pesquisas no campo de educação mostram que todos aprendem, mas de forma e em ritmo diferentes. Cabe a cada educador descobrir a forma e o ritmo de aprender de cada aluno, para reconstruir sua prática pedagógica. P - Qual o caminho para mudar o processo avaliativo? JF - Tudo deve começar pela Escola, que precisa estabelecer objetivos e critérios em seu planejamento e em seu projeto político-pedagógico. É indispensável ter clareza a respeito do que se pretende avaliar, para poder realizar o que se pretende, e saber qual metodologia adotar e quais recursos utilizar. Cada contexto tem suas especificidades. E, ao se construir esse instrumento de avaliação, ele tem de ser coerente com a prática pedagógica do professor e com o que foi ensinado. Não se pode ensinar de uma forma e avaliar de outra, é preciso haver coerência. E é aí que ocorre a grande mudança: os instrumentos de avaliação são aplicados no momento em que se ensina. O professor cria situações de aprendizagem e, ao mesmo tempo, produz situações de avaliação. Segundo Paulo Freire, ensinamos se a aprendizagem tiver acontecido; se não aconteceu aprendizagem, não ocorreu o ensino. P - Como criar espaços de ensino e aprendizagem? JF - Para cada tipo de conteúdo — conceitual, factual, procedimental e atitudinal —, há formas específicas de ensinar e, conseqüentemente, de avaliar. Os instrumentos de avaliação atendem à multiplicidade dos conteúdos e à multidimensionalidade do sujeito a avaliar. O aluno deve ser avaliado não só nos aspectos cognitivos, mas em sua plenitude, o que hoje se costuma chamar integralidade do sujeito. Mas é indispensável que haja uma coerência interna nesses instrumentos, que todos se pautem pelos critérios dos objetivos, que foram definidos e comunicados a alunos e alunas. Essa decisão não mais será tomada para punir ou selecionar, mas sim para avaliar se o ensino está dialogando com as aprendizagens. P - É possível avaliar conjuntamente o ensino e a aprendizagem? JF - Ao se avaliar a aprendizagem, também está se avaliando o ensino, pois há o questionamento da forma ensinada e a sua adequação às várias aprendizagens encontradas em sala de aula, levando à avaliação da prática pedagógica. É o momento para o professor repensar sua prática e rever sua organização pedagógica, contextualizando-a. Quanto mais ele conhecer as formas pelas quais os alunos aprendem, melhor será sua intervenção pedagógica. Ou seja, avaliação é a mediação entre o ensino do professor e as aprendizagens do aluno, é o fio da comunicação entre formas de ensinar e formas de aprender. É preciso considerar que os alunos aprendem de formas diferentes porque têm histórias de vida diferentes, são sujeitos históricos, e isso condiciona sua relação com o mundo e influencia sua forma de aprender. Avaliar, então, é também buscar informações sobre o aluno (sua vida, sua comunidade, sua família, seus sonhos...), é conhecer o sujeito e seu jeito de aprender. P - Avaliações diagnóstica, reguladora, somativa... O que significa isso? JF - O professor não pode planejar pensando em um aluno ideal, mas sim no contexto real de sua sala de aula. Para conhecer o aluno real, se faz necessária uma avaliação diagnóstica, ou prognóstica, que dirá quem são esses indivíduos, qual é sua perspectiva histórica e cognitiva. No momento seguinte, o professor quer ver como o que ensinou contribuiu para modificar o aluno, não para dar nota, mas para verificar se atingiu os objetivos pretendidos — esta é a avaliação reguladora. Quer dizer, se o aluno não aprendeu os conceitos, os procedimentos e as atitudes que constam no meu planejamento, então eu volto para regular meu trabalho, para pensar como vou atendê-lo. Minha preocupação é conscientizá-lo do que ele aprendeu e da maneira pela qual está aprendendo, para que ele se auto-avalie e se auto-regule. A avaliação somativa expressa minha atuação em um tempo pedagógico determinado, para que eu possa repensar minha prática e dar um parecer sobre o aluno; em outras palavras, a avaliação somativa avalia a qualidade da totalidade do objetivo avaliado em um período pedagógico previsto. As avaliações diagnóstica, reguladora e somativa compõem uma perspectiva de avaliação formadora, que busca acompanhar o processo de ensino. P - E quanto à auto-avaliação do professor? JF - Há reflexões fundamentais: “O que vou avaliar?” “O que é fundamental no que ensino?” “O que é relevante cognitiva e socialmente no que estou ensinando?” Alguns objetivos prévios certamente não serão atingidos, pois, durante o processo de ensino, vão emergindo novas questões. Se o professor não estiver atento às dificuldades apresentadas pelos alunos, para ajustar seu trabalho, não atingirá as metas iniciais. Os objetivos precisam ser flexibilizados durante o processo de ensino. "Cabe ao educador descobrir a forma de aprender de cada aluno e reconstruir sua própria prática pedagógica." Janssen Felipe da Silva P - Que instrumento o professor pode utilizar? JF - Um exemplo: para trabalhar a construção de um texto, preciso ter ensinado o que é texto e, quando pedir para o aluno construir um texto, devo ter um instrumento para me orientar na análise do que ele escreveu. O instrumento pode ser uma ficha de checagem, individual ou coletiva. De modo geral, anotarei em uma coluna o que acho fundamental ser avaliado e, nas outras, os focos a serem avaliados: coerência, coesão, concordância nominal, verbal, etc., com um espaço para registrar se a produção do texto atingiu ou não o que foi pedido e qual a decisão a tomar em relação aos problemas que aparecerem. Avaliar não é apenas constatar, mas, sobretudo, analisar, interpretar, tomar decisões e reorganizar o ensino. P - Como dar atendimento individual, trabalhando com classes numerosas? JF - O professor pode agrupar os alunos por nível de desenvolvimento cognitivo ou por zona de desenvolvimento proximal. E depois propor desafios pedagógicos aos grupos, de acordo com seus níveis de aprendizagem. Segundo Piaget, o desafio tem de ser superável, pertinente ao nível de aprendizagem de quem está aprendendo. Exemplificando com uma brincadeira, dizemos que existem três tipos de aluno: o primeiro, que aperreia o professor; o segundo, que aperreia o professor; e o terceiro, que fica tentando fazer a tarefa. O primeiro termina a atividade em dois minutos, pois esta não era desafio para ele. O segundo olha a tarefa e não entende nada, não consegue nem interpretar o desafio. O terceiro é aquele que encontra um desafio e tenta superá-lo. O que faltou aos dois primeiros? Atividades pertinentes ao seu nível de aprendizagem. É preciso que o professor atualize sua prática, a partir dos instrumentos avaliativos; ele tem de criar situações por meio das quais o aluno descubra alguma coisa. Só existe situação de aprendizagem quando o aluno é desafiado a descobrir, a utilizar o que sabe para construir o que ainda não sabe. P - Esse desafio não é muito difícil para os professores? JF - A formação continuada ajuda o professor a repensar sua prática. Ele precisa questionar o que é aprendizagem, o que é ensino e a função social do que está sendo ensinado. Esses três elementos são fundamentais para o professor repensar sua prática, questionar a concepção de ensino e aprendizagem e dos conteúdos que serão trabalhados. Ele não vai subtrair conteúdo nem deixar de ensinar, imaginando que o aluno não vá entender. Precisará se aproximar do processo de aprendizagem dos alunos e deixar de lado o planejamento rígido, em busca de um planejamento flexível. Mas isso somente será possível com uma boa fundamentação teórica, pois educação não é improviso — é intencional, é planejada. P - Como é um planejamento flexível? JF - É importante que a escola seja um espaço de aprendizagem não só para o aluno, mas fundamentalmente para o professor. Também é imprescindível que os professores, em equipe, possam socializar suas formas de planejar e de avaliar e que questionem suas posturas pedagógicas. O professor precisa ter oportunidade de continuar sempre a aprender. Na formação continuada, ele adquire conceitos novos e passa a questionar os que já tem. E, com tudo isso, descobre novos caminhos para o planejamento. Mas também são importantes sua sensibilidade pedagógica e os conhecimentos que acumulou em sua experiência. A sala de aula é como um laboratório da prática pedagógica e da aprendizagem, um ambiente de investigação e um lugar de pesquisa didática, de produção de saberes e desenvolvimento de competências. P - Os alunos e a família podem entender esse novo conceito? JF - Os pais pedem notas porque estão acostumados com a avaliação classificatória. Cabe à escola ajudá-los a entender o processo de avaliação, definindo seu projeto político-pedagógico. Um projeto político-pedagógico construído coletivamente, com significado, serve de referência para o planejamento dos professores. E esse projeto deve ser muito bem explicado aos pais, de preferência nos primeiros dias de aula. Naturalmente, a mudança não acontecerá do dia para a noite. Mas a insistência em promover reuniões nas quais os professores expliquem aos pais como ensinam, por que ensinam daquela forma e, conseqüentemente, por que avaliam de maneira diferente sustentará o diálogo entre escola e família. Que esse diálogo nunca seja para dizer que o aluno é ruim, mas para informar como ele está aprendendo. P - Como conduzir o diálogo com os pais e com os alunos? JF - Há muitas maneiras, mas veja, por exemplo, o relato de uma professora de primeira série. Ao final de uma etapa de ensino, depois da aplicação de vários instrumentos avaliativos, ela enviou cartas aos pais de cada aluno, informando o que a criança aprendera, o que não conseguira aprender e o que ela pretendia fazer. A carta não substituiu o boletim, mas, ao acompanhá-lo, deu significado a ele. É importante frisar que a nota diz pouco sobre a aprendizagem, apenas classifica o aluno numa escala de valor, numa hierarquia. A carta dessa professora foi um parecer diagnóstico, favorecendo a conscientização dos pais para o processo de mudança. P - Como corrigir os erros dos alunos? JF - Quando o aluno erra dentro de uma lógica, ele erra tentando superar um desafio. O professor precisa estar atento para compreender como o estudante está construindo seu conhecimento, suas hipóteses, suas competências. Quando o educador faz do erro fonte de castigo, o aluno deixa de criar hipóteses, de se arriscar, com medo de ser punido — isso favorece a formação de pessoas omissas, não críticas, não criativas. Estimular o aluno a continuar tentando e superar suas dificuldades favorece seu crescimento como aprendiz e como pessoa, fazendo com que ele se sinta mais seguro e confiante; desenvolve sua capacidade crítica, estimulando-o a ser autônomo. P - De que outra maneira a avaliação pode ajudar no processo de aprendizagem? JF - Criando situações para que os alunos questionem, ao procurar agrupá-los por zonas de desenvolvimento proximal e apresentar desafios que sejam pertinentes. Também podemos agrupar alunos que já dominaram determinado conhecimento com aqueles que ainda não dominaram, os que sabem ajudarão os outros a questionar, os próprios colegas criarão desafios. A avaliação é o mapeamento da aprendizagem do aluno e do ensino, e, nesse momento, o professor pode fazer uma reflexão consistente da prática pedagógica e reconstruí-la, criando desafios que conduzam o aluno a superar seus estágios cognitivos. P - Como a escola deve refletir sobre a reprovação? JF - Ainda hoje, colocamos a responsabilidade total nas costas do aluno. Quando a escola se centra no ensino uniforme, acreditando que existe um aluno ideal e uma única forma de aprender, quem não se aproxima dessa uniformidade é punido, fica com o estigma de fracassado e, conseqüentemente, é excluído da escola e da sociedade. Ao excluir o aluno em situação de aprendizagem, estamos promovendo sua exclusão de uma vida digna, da possibilidade de se construir como cidadão. Precisamos criar uma nova cultura educativa, que construa um nova cultura avaliativa e um novo sentido para o sistema de ensino. Janssen Felipe da Silva lecionou Avaliações Educacionais da Aprendizagem na Universidade Federal de Pernambuco e na pós-graduação da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho). É professor do curso de magistério do Instituto Profissional Maria Auxiliadora e também do Ensino Fundamental da rede municipal do Recife. Atua como consultor do MEC, na rede de formadores do Programa Parâmetros em Ação, e coordenou a série de vídeos Avaliação e Aprendizagem, da TV Escola. Mestre e doutorando do Núcleo de Pesquisa de Formação de Professores e Prática Pedagógica - UFPE - CE (Centro de Educação). AS ENTREVISTADORAS Lêda Cavalcanti é licenciada em Biologia e Vera Lúcia Lopes, em Letras. Além do magistério, ambas têm atuado como consultoras na Secretaria de Educação de Pernambuco e em pesquisas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep/MEC) e do Fundescola. TV Escola – nº 29 – outubro/novembro 2002 – O Canal da Educação – págs. 40 a 43. |
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